21/08/2018

magistrado

quem usa sérgio
a quem sérgio usa
sérgio usa a quem
o usa sérgio quem
que uso sérgio tem
tem usa sérgio, hein?

10/07/2018

18/II

eu acredito em você
mas o país anda tão mal
eu acredito em você
com muita conta pra pagar
eu acredito em você
executaram outra mulher
no centro do rio de janeiro
a TV diz que é assim
o jornal endossa o oficial
eu acredito em você
dá vontade de morrer
a justiça é uma convenção
meu peito é um parafuso
numa parede de concreto
eu acredito
em você

28/03/2018

velório

meu amigo
n'uma caixa de madeira
eternamente dormindo.
que cena!
jazia sorrindo
- que seja dito -
como se ainda 
estivesse vivo.
como se dissesse:
tá tudo bem,
querido.
funesto? talvez.
não sei. não.
não teve graça,
mas entendi o recado
dos silêncios
que nos avisam:

- vivam!

09/12/2016

empatia


todo dia
na mesma esquina
um índio descalço
vende barcos de papel

eu olho pra você
quase sensibilizado
com a sua comoção
que dura mais ou menos
uns 4 segundos

saudade


foi embora da minha casa
e só

09/12/2015

que título ridículo

que formato defasado,
burro e anti-audiovisual
onde está o movimento?
cadê o tridimensional?

nem um traço abstrato
sem um fundo musical
falta interatividade
com a mídia social.

...cansamos.
foram oito linhas,
onze, agora.

20/01/2015

O cheiro

Eu estava cansado após longos trinta minutos dirigindo atrás daquele caminhão de galinhas. Nenhum ponto de ultrapassagem, engarrafamento pesado numa estrada nada amigável do interior da província de São Pedro e aquele cheiro de merda terrível. Quem nasce no interior aprende desde cedo a distinguir a espécie do bicho pelo cheiro da merda. E, bem, eu estava com pressa. Têm dias que a gente só quer chegar logo. Decidi assumir o risco e forçar a barra para ultrapassar e assim foi. Já livre do cheiro pensei na rotina do motorista, o dia a dia daquilo tudo e como poderia ser a relação dele com aquele fedor permanente. Se ainda incomodava ou se ele poderia ter passado por algum tipo de  processo físico de adaptação pra andar assim tão resignado. Quando ultrapassei o caminhão, sorrindo como se me cumprimentasse, o motorista buzinou duas vezes. De boné azul, parecia um poeta.

13/01/2015

solidarité

a Nigéria chora e
presumo que também o Haiti 
ao menos é o que diz 
- de quando em quando -
a televisão daqui.

A bomba e o horror
o afã dos jornalistas 
das redes sociais
no México e no Brasil
- touchant!

já sobre a Namíbia,
eu nada sei, mas
deve haver comoção por lá
por que todo mundo se mobiliza rápido
quando o atentado é europeu:

o atrasado
sou eu.



05/08/2013

só isso

tem dias que me sinto só
independente da quantidade de gente 
que está ao meu redor
simplesmente acordo assim
desinteressado do mundo
n'um estado profundo 
de abnegação - 
é engraçado porque quanto mais só me sinto
mais tenho a impressão de que há uma multidão 
de gente sentindo a mesma coisa e
talvez não estejamos realmente sós, mas
- só - distantes uns dos outros.
e é nesse instante que sinto
que devo sentar e escrever isso:

um manifesto discreto
entre o silêncio
e o grito

24/04/2013

telespectador

uma rebelião
no canal cinco:
dois jovens mortos
e um apresentador urrando coisas
sobre vagabundos irrecuperáveis -
ele grita alto,
mesmo no microfone.
parece estar bem alimentado,
gordo de ódio,
aponta o dedo para 
a câmera - um imperador
de merda nenhuma
cuspindo certezas,
clamando punições,
acompanhado por um sorriso sujo
no canto da boca úmida.
não sei, mas
tenho a impressão que 
ele é assistido por uma legião
de sádicos 
e que a desgraça alheia
conforta
esse porco

02/11/2012

o rapaz

acordou cedo
n’um quarto de hotel
de algum lugar do mundo -
tomou banho,
escovou os dentes,
cuspiu na pia
a noite anterior
coisa que fazia
religiosamente -
repetia
os movimentos de sempre:
mesmos horários,
dias diferentes –
foi quando alguma coisa aconteceu
n'uma questão de segundo,
um movimento milimétrico do olho
n'um quadro, o cabelo branco.
um fio só -
em seguida, como n'um plano sequência,
veio a barba enviesada, 
paredes, chão...
enfim, o absurdo.
percebeu que não tinha nada
além de dois buracos
embaixo dos olhos
e
voltou a dormir

28/10/2012

chuveiro


eu não achava
que éramos tão diferentes
até você afirmar
com assustadora veemência
o que, provavelmente,
estava entalado aí dentro
há muito muito tempo.
talvez o nosso amor
tenha virado conveniência
ou estamos mudando
nos tornando velhos
buscando a falsa segurança
da vida burocrata:
dois cães,
três filhos,
fila do banco,
almoço de domingo -
eu discordo, mas considero justo.
você deve ter o direito
de amar o que quiser
o direito
de amar você mesma
a ponto de esperar de alguém
um futuro que planejou.
não julgo.
enquanto isso,
o tempo escorre pelo ralo
como a água do chuveiro
onde tomávamos banho
juntos

09/09/2012

o tímido (falando sozinho)

hã, assim,
não sei bem, mas
sinto que alguém
pensa igual a mim 
em silêncio

30/06/2012

esse cara

quando fica só
encontra alguém
calado, parecido com ele
cansado, resignado,
orgulhoso do vazio,
de alma amarela.
pensa que engana, mas
não. n'um sorriso falso
denuncia a mentira
de uma alegria forçada
que ninguém vê
que ninguém viu -
mas é sorriso
diria o narciso
é, pode até ser
ou um gesto mecânico
inconsciente
fingindo segurança:
uma falsa conversa

está sozinho
não são duas pessoas

19/04/2012

cidade

ouço
o som de um martelo
batendo no tijolo
de alguma construção
aqui perto.
esqueço o resto,
não vejo movimento.
só escuto a batida regular
- toc, toc, toc -
o tilintar
metrônomo do cotidiano
de algum humano
de alguém
com nome e sobrenome.
n'um segundo ouço, 
n'outro esqueço.
o mundo volta,
eu não termino
essa história anônima
sobre o som
de um martelo

16/04/2012

a casa

todo dia
uma casa é derrubada.
pedaços de concreto
vão
ferro retorcido
e etc's.
mas toda vez
que uma casa é derrubada
independente
da lágrima derramada
por cada morador
outra terá de ser construída
nova
até o dia
que ela será derrubada
outra vez
por outro alguém

mais pedaços de concreto
vão
ferro retorcido
e etc's.

17/02/2012

2:35 da manhã

quando eu não tenho sono
acho que vou escrevendo
o que provavelmente possa ser lido
por alguém como eu
n'uma noite como essa

07/12/2011

todo mundo faz isso

eu vou fazer você
ler algo improdutivo
sem nenhum motivo
pra depois olhar
o relógio ou celular
e calcular o tempo 
perdido
em oito ou nove linhas
- que contei de cabeça

25/10/2011

Tradução da transcrição do discurso de agradecimento de Leonard Cohen no recebimento do prêmio de honra pela sua contribuição literária, prêmio príncipe de astúrias.



- Leonard Cohen:

- É uma grande honra estar aqui em frente a todos vocês essa noite. Talvez, como o grande maestro, Riccardo Muti, eu não estou acostumado a ficar em frente a um público sem uma orquestra atrás de mim, mas vou fazer o meu melhor como um artista solo essa noite.

Eu fiquei acordado a noite de ontem me perguntando o que eu deveria dizer para essa assembléia. Depois de ter comido todas as barras de chocolate e os amendoins do minibar, Eu rabisquei algumas palavras. Eu não acho que tenho que usá-las. Obviamente, estou profundamente emocionado por ser reconhecido pela Fundação. Mas eu venho aqui essa noite para expressar outra dimensão de gratidão; Eu acho que posso fazer isso em três ou quatro minutos.

Quando eu estava em Los Angeles, sentia um tipo de mal-estar porque eu sempre via alguma ambiguidade em um prêmio para poesias. A poesia vem de um lugar que ninguém comanda, ninguém conquista. Então, senti algo como um charlatão em aceitar um prêmio por uma atividade que eu não comando. Em outras palavras, se eu soubesse de onde vinham as boas canções, teria ido mais pra esse local.

Eu fui obrigado no meio desse calvário em ir lá e pegar minha guitarra.
Eu tenho uma guitarra Conde, que foi feita na Espanha em um grande workshop realizado na rua Gravina, número 7. Eu peguei um instrumento que adquiri há 40 anos. Tirei ele do case, o levantei, e ele pareceu estar preenchido de gás hélio de tão leve.

E coloquei ele perto do meu rosto, e coloquei meu rosto perto da roseta lindamente desenhada e inalei a fragrância da madeira viva. Nós sabemos que aquela madeira nunca morre. Eu inalei a fragrância do cedro e era tão fresca quanto no primeiro dia que comprei o instrumento. E uma voz disse pra mim, "Você é um homem velho e você nunca disse obrigado, nunca trouxe sua gratidão de volta para o solo d'onde surgiu essa fragrância. E então, eu estou aqui hoje para agradecer ao solo e a alma dessa terra que me deu tanto.

Porque eu sei que uma carteira de identidade não é um homem, uma avaliação não é um país.

Agora, vocês já sabem da minha profunda associação e confraternização com o poeta Frederico Garcia Lorca. Eu poderia dizer que, quando eu era um jovem, um adolescente, e eu estava faminto por uma voz, estudei os poetas ingleses e conhecia suas obras muito bem, e eu copiei seus estilos, mas não encontrava uma voz. Foi só quando eu li, mesmo em uma tradução, os trabalhos de Lorca que eu entendi que aquela era a voz. Não é que eu tenha copiado a sua voz; eu não me arriscaria. Mas ele me deu a permissão de encontrar uma voz, de localizar uma voz, que é encontrar um eu, um eu que não é fixo, um eu que luta pela própria existência.

Enquanto fui crescendo, eu entendi as instruções vindas daquela voz. Quais eram as instruções? As instruções eram: nunca lamentar casualmente. E se eu tiver de expressar a grande derrota inevitável que espera por todos nós, que o faça dentro dos limites  da dignidade e da beleza.

E então, eu tinha uma voz, mas não tinha um instrumento. Não tinha uma canção.

Eu era um guitarrista desinteressado. Sabia alguns acordes. Sabia só alguns deles. Eu sentava com meus amigos de colégio, bebendo e cantando canções folks e também as canções mais populares do dia, mas eu nunca, nem em mil anos imaginei que me tornaria um músico ou um cantor.

Um dia, no começo dos anos 60, eu visitava minha mãe em Montreal. A casa dela era do lado de um parque e, nesse parque, tinha uma quadra de tênis onde a garotada costumava ir pra ver aqueles belos (belas) jogadores (as) de tênis se divertindo com seu esporte. Eu vaguei de volta pelo parque que conhecia desde a infância e lá tinha um jovem tocando uma guitarra. Ele estava tocando uma guitarra flamenca e tinha uns dois ou três garotos ao redor do homem. Eu amei a maneira como ele tocou. Tinha uma coisa na forma de como ele tocava que me pegou. Era a maneira que eu queria tocar e sabia que nunca seria hábil para tal.

E, eu sentei lá com os outros que o escutavam por alguns momentos, e quando teve um silêncio, um silêncio apropriado, eu perguntei pra ele se ele poderia me ensinar a tocar. Ele era um jovem espanhol, e nós só podíamos nos comunicar no meu Françês quebrado e no Francês quebrado dele. Ele não falava inglês. E concordou em ensinar-me algumas lições de guitarra. Eu apontei para a casa da minha mãe, que poderia ser vista da quadra de tênis, e fizemos um acordo, ele definiu um preço.

Apareceu na casa de minha mãe no dia seguinte e disse, "Deixe-me ouvir você tocar algo." Eu tentei tocar alguma coisa e ele disse, "Você não sabe tocar, não é?"

Eu disse, "Não, eu não sei como tocar." Ele disse "Primeiro de tudo, deixe-me afinar sua guitarra. Está desafinada." Então, ele pegou a guitarra e afinou-a. Ele disse: "Não é uma guitarra ruim." Não era a Conde, mas a guitarra não era mesmo ruim. Então, ele devolveu ela pra mim e disse: "Agora toca".

Eu não podia tocar melhor que aquilo.

Ele disse "Deixe-me lhe mostrar alguns acordes." E ele pegou a guitarra e tirou um som daquela guitarra que eu nunca tinha ouvido. Tocou uma sequência de acordes com um trêmolo, e dizia, " Deixe-me pôr seus dedos nos trastes," e colocava meus dedos nos trastes. E dizia: "Agora, agora toca."

Foi um desastre. Ele disse, "Eu volto amanhã."

Ele voltou no dia seguinte, colocou minhas mãos na guitarra, colocou ela em meu colo da maneira que era apropriada, e comecei outra vez com aqueles seis acordes - uma progressão de seis acordes. Muitas, muitas músicas flamencas são baseadas nelas.

Eu estava um pouco melhor naquele dia. No terceiro dia - tinha melhorado, de alguma forma tinha melhorado. Eu sabia os acordes agora. E, eu sabia que mesmo que eu não coordenasse meus dedos com meu dedão para produzir aquele padrão correto do trêmolo, eu sabia os acordes, e sabia eles muito, muito bem.

No outro dia, ele não veio. Ele não veio. Eu tinha o número da sua, da sua casa em Montreal. Telefonei para descobrir o motivo da sua ausência, e alguém me disse que ele tinha se matado. Que ele tinha cometido suicídio.

Eu não sabia nada sobre aquele homem. Eu não sabia de que parte da Espanha ele tinha vindo. Eu não sabia por que ele veio até Montreal. Eu não sabia por qual motivo ele tocava lá. Eu não imaginava qual a razão dele aparecer lá naquela quadra de tênis. Eu não sabia porque ele tirou sua própria vida.

Eu fiquei extremamente triste, claro. Mas agora eu digo uma coisa que nunca disse em público. Foram aqueles seis acordes, foi aquele padrão de guitarra que foi a base de todas as minhas canções e minhas músicas. Então, agora eu começo a entender a dimensão da gratidão que tenho por esse país.

Tudo que vocês encontraram de bom no meu trabalho veio desse lugar. Tudo, tudo que vocês encontraram no meu trabalho de bom, nas minhas canções e na minha poesia foi inspirado por esse solo.

Então, eu agradeço muito pela calorosa hospitalidade que vocês sempre demonstraram pelo meu trabalho. Ele é realmente de vocês, e vocês me permitiram agora poder afixar minha assinatura no canto da página.




01/09/2011

ninguém morreu

sabe,
eu vou guardar
essa pedrinha
na gaveta
não por vingança
- longe de mim - mas
sim pra depois comê-la
quebrar meus dentes
e sorrir sangrando
pensando em você

24/08/2011

erramos, parte 34

o retrato empoeirado
no canto da caixa de papelão
nosso amor registrado
n'um pedaço de papel
amarelado -
que olhando bem 
quem ousaria negá-lo?
quem?

15/08/2011

para Daniel Johnston

um artista
caminhava sozinho
dessa vez não chovia
fazia um sol primaveril
abelhas, flores e árvores
essas coisas todas
pequenas da natureza
eu já ouvi do Daniel histórias de artistas
que envelheciam, ele disse
que alguns procuravam a fama e a glória
e que outros não eram tão ousados,
mas que ambos caminhavam sozinhos
apreciando a cena, sem preocupação,
enquanto os outros tentavam
justificar aquelas situações
procurando a luz do do sol
pela televisão

14/08/2011

chovia

domingo, nove da manhã,
um homem de fisionomia cansada
(mais ou menos uns setenta anos)
descia do carro -
de banho tomado, cabelo penteado,
ramalhete de flores na mão.
parecia bem. 
foi quando assim, sozinho,
coluna ereta,
entrou naquele cemitério.



11/08/2011

Aquele homem

todo dia, na mesma praça,
tem um homem sentado
exatamente no mesmo lugar.
sujo, barbado, mal tratado 
pelo trago e com um pescoço inclinado
que lembra sempre a posição 
de um certo homem na cruz.
nuns dias eu acho
que o homem é um santo
imagino a sua história


e têm outras vezes
que eu só queria saber
o que ele pensa
sobre o tempo

17/07/2011

ecologia

quando você me colocou
naquela sacola plástica
talvez acreditasse ingenuamente
que eu me conformasse -
afinal, eu estava preso
dentro de alguma coisa
que demoraria a decompor.
lembro de você parecer
gostar da situação:
suponho que não pensou
que eu fosse ver 
pouco antes de morrer
você lembrar dos nossos corpos nus
ao ver as sacolas intactas
e perceber que fui só eu
quem decompus.

11/07/2011

o canário

aquele canário
que cantava preso
sempre me pareceu
um pássaro idiota

se eu fosse ele 
ficaria calado
nem alpiste
nem obrigado
me fariam cantar
daquele jeito

só que pensando agora
não sei muito bem
se o canário era o esperto
e o idiota era...quem?

Pedro Vermelho

quando você joga o amendoim
pulo não por instinto
finjo uma reação física
caretas e piruetas
para estabelecer uma relação de troca
entre nossas espécies 
- diga-se de passagem - 
aprendi isso com um chimpanzé velhaco
que morava na jaula ao lado;
quando bebia e urrava a noite toda
batendo nas grades, nunca conformado
com a situação que se encontrava.
eu estava confortável no manejo
que era submetido por alguns amendoins
e só queria dizer, na minha condição de macaco,
que eu acho que somos iguais,
iguaizinhos,
não tem diferença
entre os amendoins
e as piruetas

05/07/2011

é

se eu soubesse desenhar
a sua boca triste
junto de meus indicadores
suavemente tocando
a pele das tuas bochechas
tentando forjar em você
um sorriso forçado, esbulhado,
pois só seu desenho do rosto
quando posto sorrindo
parece que empurra
o mundo

28/06/2011

não

não adianta,
é uma destreza
em esnobar
que só a sutileza
do ato esnobe
é encantadora.
não pelo não
não dito -
mas pela classe
do silêncio
da reticência
taciturna certeza
sabe,
eu agradeço:
obrigado
pelo desprezo
quando você se calou
fui tentar dormir,
e não deu. mas depois fui trabalhar
e tudo mais

17/06/2011

gaveta

procuro um rascunho
em alguma gaveta
qualquer frase inacabada
perdida, esquecida,
um mísero papel
que possa ter uma continuidade
ou outro fim

mas tem dia que ela tá vazia.
penso no papel
não em mim

13/05/2011

lamento

desencana, querida
que assim é a vida
que culpa nós temos
de viver o querer?
um deus obsceno
que renega a vontade
um triste senhor, aliás,
onde ele está?
alguém viu? 
alguém sabe?

deixou aqui
um nazareno
pregado na cruz
cheio de sangue
e sofrimento

eu lamento,
mas nós
estamos vivos

06/05/2011

assim

sem mil estrofes
de versos inoportunos:
imagine um pássaro
explodindo

14/04/2011

para Leonard Cohen

toda vez que chove
eu fico imaginando d'aqui
as pessoas em seus apartamentos
olhando por essas janelas
e
me pergunto quantas delas
depois de um suspiro
sentam e escrevem isso

04/11/2010

quinta-feira

se fosse o Caetano
talvez descrevesse
a sua beleza
de uma forma infantil
citaria o Brasil
ou alguma cidade baiana

se fosse o Roberto
diria, por certo,
alguma coisa singela
entre a flor e a janela
algo sobre o cotidiano
das pessoas comuns

um dia você percebe
que todo mundo
sempre fala a mesma coisa

10/09/2010

hoje cedo

fui desarmado
por um filhote de pardal
que olhou fundo nos meus olhos
inclinou a cabeça, bateu asas
e voou

parecia
que ele sabia
de alguma coisa

18/06/2010

2010

mandaram photoshopar
a foto do teu jazigo
há anos cubro de flores
um túmulo desconhecido.

07/10/2009

XXXX

o acionista reclama da gerente
que reclama do sub-gerente
que reclama da chefe de departamento
que reclama da responsável do setor
que reclama do funcionário
que reclama da mulher
que reclama do marido
que reclama do filho
que reclama do cachorro

e o cachorro
feliz

29/09/2009

[transcrição de "Um relatório para uma academia'' de Franz Kafka, 1917]


Eminentes senhores da Academia:

Conferem-me a honra de me convidar a oferecer à Academia um relatório sobre a minha pregressa vida de macaco.

Não posso infelizmente corresponder ao convite nesse sentido. Quase cinco anos me separam da condição de símio; espaço de tempo que medido pelo calendário talvez seja breve, mas que é infindavelmente longo para atravessar a galope como eu o fiz, acompanhado em alguns trechos por pessoas excelentes, conselhos, aplauso e música orquestral, mas no fundo sozinho, pois, para insistir na imagem, todo acompanhamento se mantinha bem recuado diante da barreira. Essa realização teria sido impossível se eu tivesse querido me apegar com teimosia à minha origem e às lembranças de juventude. Justamente a renúncia a qualquer obstinação era o supremo mandamento que eu me havia imposto; eu, macaco livre, me submeti a esse jugo. Com isso porém as recordações, por seu turno, se fecharam cada vez mais pra mim. O retorno, caso os homens o tivessem desejado, estava de início liberado através do portal inteiro que o céu forma sobre a terra, mas ele foi se tornando simultaneamente mais baixo e mais estreito com a minha evolução, empurrado para frente a chicote; sentia-me melhor e mais incluído no mundo dos homens; a tormenta cujo sopro me carregava do passado amainou; hoje é apenas uma corrente de ar que me esfria os calcanhares; e o buraco na distância, através do qual ela vem e através do qual eu outrora vim, ficou tão pequeno que eu me esfolaria no ato de atravessá-lo, mesmo que as forças e a vontade bastassem para que retrocedesse até lá. Falando francamente - por mais que eu goste de escolher imagens para estas coisas - , falando francamente, sua origem de macaco, meus senhores, até onde tenham atrás de si algo dessa natureza, não pode estar tão distante dos senhores como a minha está distante de mim. Mas ela faz cócegas no calcanhar de qualquer um que caminhe sobre a terra - do pequeno chimpanzé ao grande Aquiles.

No sentido mais restrito, entretanto, posso talvez responder à indagação dos senhores e o faço até com grande alegria. A primeira coisa que aprendi foi dar um aperto de mão; o aperto de mão é testemunho de franqueza; possa eu hoje, quando estou no auge da minha carreira, acrescentar àquele primeiro aperto de mão a palavra franca. Não ensinará nada essencialmente novo à Academia e ficará muito aquém do que se exigiu de mim e daquilo que, mesmo com a maior boa vontade, eu não posso dizer - ainda assim deve mostrar a linha de orientação pela qual um ex-macaco entrou no mundo dos homens e aí se estabeleceu. Mas sem dúvida não poderia dizer nem a insignificância que se segue, se não estivesse plenamente seguro de mim e se o meu lugar em todos os grandes teatros de variedades do mundo civilizado não tivesse se firmado a ponto de se tornar inabalável.

Sou natural da Costa do Ouro. Sobre como fui capturado, tenho de me valer de relatos de terceiros. Uma expedição de caça da firma Hagenbeck - aliás, com o chefe dela esvaziei desde então algumas boas garrafas de vinho tinto - estava de tocaia nos arbustos da margem, quando ao anoitecer, eu, no meio de um bando, fui beber água. Atiraram; fui o único atingido; levei dois tiros. Um na maçã do rosto: esse foi leve, mas deixou uma cicatriz vermelha de pêlos raspados, que me valeu o apelido de Pedro Vermelho, absolutamente descabido e que só podia ser inventado por um macaco, como se eu me diferenciasse do macaco amestrado Pedro - morto não faz muito tempo e conhecido em um ou outro lugar - somente pela mancha vermelha na maçã da cara. Mas digo isso apenas de passagem.

O segundo tiro me acertou embaixo da anca. Foi grave e a ele se deve o fato de ainda hoje eu mancar um pouco. Li recentemente, num artigo de algum dos dez mil cabeças-de-vento que se manifestam sobre mim nos jornais, que minha natureza de símio ainda não está totalmente reprimida; a prova disso é que, quando chegam visitas, eu tenho a predileção em despir as calças para mostrar o lugar onde aquele tiro entrou. Deviam arrancar um a um os dedinhos da mão do sujeito que escreveu isso. Eu - posso despir as calças a quem me apraz; não se encontrará lá nada senão uma pelúcia bem tratada e a cicatriz de um - escolhamos aqui, para um objetivo definido, uma palavra definida, mas que não deve ser mal entendida - a cicatriz de um tiro deliquente. Está tudo exposto à luz do dia, não há nada a esconder, quando se trata da verdade, qualquer um de espírito largo joga fora as mais finas maneiras. Se, ao contrário, aquele escrevinhador despisse as calças diante da visita que chega, isso sem dúvida teria um outro aspecto e quero considerar como sinal de juízo se ele não o fizer. Mas então que me deixe em paz com meus sentimentos delicados!

Depois daqueles tiros eu acordei - e aqui, aos poucos, começa a minha própria lembrança - numa jaula na coberta do navio a vapor da firma Hagenbeck. Não era uma jaula gradeada de quatro lados; eram apenas três paredes pregadas num caixote, que formava portanto a quarta parede. O conjunto era baixo demais para que eu me levantasse e estreito demais para que eu me sentasse. Por isso fiquei agachado, com os joelhos dobrados que tremiam sem parar, na verdade voltado para o caixote, uma vez que a princípio eu provavelmente não queria ver ninguém e desejava estar sempre no escuro, enquanto por trás as grades da jaula me penetravam na carne. Consideram vantajoso esse tipo de confinamento de animais selvagens nos primeiro tempos e hoje, pela minha experiência, não posso negar que seja assim do ponto de vista humano.

Mas então eu não pensava isso. Pela primeira vez na vida estava sem saída; ao menos em linha reta ela não existia; em linha reta diante de mim estava o caixote, cada tábua firmemente ajustada à outra. É verdade que por entre as tábuas havia uma fresta que ia de lado a lado e, quando descobri, saudei-a com o uivo bem-aventurado do animal irracional, mas nem de longe essa fresta bastava para deixar o rabo passar e mesmo com toda a força de um macaco ela não podia ser alargada.

Conforme me disseram mais tarde, devo ter feito muito pouco barulho, donde se concluiu que ou iria perecer logo ou que, caso conseguisse sobreviver aos primeiros tempos críticos, ficaria bastante apto a me amestrar. Sobrevivi a esses tempos. Surdos soluços, dolorosa caça às pulgas, fatigado lamber de um coco, batidas de crânio na parede do caixote e mostrar a língua quando alguém se aproximava - foram essas as primeiras ocupações da minha nova vida. Em tudo porém apenas um sentimento: nenhuma saída. Naturalmente só posso retraçar com palavras humanas o que então era sentido à maneira de macaco e em consequência disso cometo distorções; mas embora não possa mais alcançar a velha verdade do símio, pelo menos no sentido da minha descrição ela existe - quanto a isso não há dúvida.

Até então eu tivera tantas vias de saída e agora nenhuma! Estava encalhado. Tivessem me pregado, minha liberdade não teria ficado menor. Por que isso? Escalavre a carne entre os dedos do pé que não vai achar o motivo. Comprima as coisas contra a barra da jaula até que ela o parta em dois que não vai achar o motivo. Eu não tinha saída mas precisava arranjar uma, pois sem ela não podia viver. Caso permanecesse sempre colado à parede daquele caixote teria esticado as canelas sem remissão. Mas na firma Hagenback o lugar dos macacos é de encontro à parede do caixote - pois bem, por isso deixei de ser macaco. Um raciocínio claro e belo que de algum modo eu devo ter chocado com a barriga, pois os macacos pensam com a barriga.

Tenho medo de que não entendam direito o que eu entendo por saída. Emprego a palavra no seu sentido mais comum e pleno. É intencionalmente que não digo liberdade. Não me refiro a esse grande sentimento de liberdade por todos os lados. Como macaco talvez eu o conhecesse e travei conhecimento com pessoas que têm essa aspiração. Mas no que me diz respeito, eu não exigia liberdade nem naquela época nem hoje. Dito de passagem: é muito frequente que os homens se ludibriem entre si com a liberdade. E assim como a liberdade figura entre os sentimentos mais sublimes, também o ludíbrio correspondente figura entre os mais elevados. Muitas vezes vi nos teatros de variedades, antes de minha entrada em cena, um ou outro par de artistas às voltas com os trapézios lá do alto junto ao teto. Eles se arrojavam, balançavam, saltavam, voavam um para os braços do outro, um carregava o outro pelos cabelos presos nos dentes. "Isso também é liberdade humana", eu pensava, "movimento soberano." Ó derrisão da sagrada natureza! Nenhuma construção ficaria em pé diante da gargalhada dos macacos à vista disso.

Não, liberdade eu não queria. Apenas uma saída; à direita, à esquerda, para onde quer que fosse; eu não fazia outras exigências; a saída podia também ser apenas um engano; a exigência era pequena, o engano não seria maior. Ir em frente, ir em frente! Só não ficar parado com os braços levantados, comprimido contra a parede de um caixote.

Hoje vejo claro: sem a máxima tranquilidade interior eu nunca poderia ter escapado. E de fato talvez deva tudo o que me tornei à tranquilidade que me sobreveio depois dos primeiros dias lá no navio. Mas a tranquilidade, por sua vez, eu devo sem dúvida às pessoas do navio.

São homens bons, apesar de tudo. Ainda hoje gosto de me lembrar do som dos seus passos pesados que então ressoavam na minha sonolência. Tinham o hábito de agarrar tudo com extrema lentidão. Se algum queria coçar os olhos, erguia a mão como se ela fosse um prumo de chumbo. Suas brincadeiras eram grosseiras mas calorosas. Seu riso estava sempre misturado a uma tosse que soava perigosa mas não significava nada. Tinham sempre na boca alguma coisa para cuspir e para eles era indiferente onde cuspiam. Queixavam-se sempre que minhas pulgas pulavam em cima deles, mas nunca ficaram seriamente zangados comigo por isso; sabiam muito bem que nos meus pêlos as pulgas prosperam e que as pulgas são saltadoras; conformavam-se com isso. Quando estavam de folga, alguns sentavam-se em semicírculo à minha volta; quase não falavam, mas arrulhavam uns para os outros; fumavam os cachimbos esticados sobre os caixotes; davam tapas nos joelhos assim que eu fazia o menor movimento e de vez em quando um deles pegava um pau e me fazia cócegas onde me era agradável. Se hoje eu fosse convidado a fazer uma viagem nesse navio certamente recusaria o convite, mas é igualmente certo que lá na coberta da embarcação eu não me entregaria apenas a más recordações.

A tranquilidade que conquistei nesse círculo dessas pessoas foi o que acima de tudo me impediu de qualquer tentativa de fuga. Da perspectiva de hoje me parece que eu teria no mínimo pressentido que precisava achar uma saída caso quisesse viver, mas que essa saída não devia ser alcançada pela fuga. Não sei mais se a fuga era possível, porém acredito nisso; a um macaco a fuga deveria ser sempre possível. Com os dentes que tenho hoje preciso ser cauteloso até no ato habitual de quebrar nozes, mas naquela época decerto eu teria conseguido, com o correr do tempo, partir nos dentes a fechadura. Não o fiz. O que teria ganho com isso? Teriam me prendido de novo, mal a cabeça estivesse de fora, e trancafiado numa jaula pior ainda; ou então poderia ter fugido sem ser notado até o lado oposto, onde estavam os outros animais, quem sabe até às cobras gigantescas, e exalado o último suspiro nos seus abraços; ou então teria conseguido escapar para o convés e saltado pela amurada: aí teria balançado um pouquinho sobre o oceano e me afogado. Atos de desespero. Não fazia cálculos tão humanos, mas sob a influência do ambiente comportei-me como se os tivesse feito.

Não fazia cálculos mas sem dúvida observava com toda a calma. Via aqueles homens andando de cima para baixo, sempre os mesmos rotos, os mesmos movimentos, muitas vezes me parecendo que eram apenas um. Aquele homem ou homens andavam pois sem impedimentos. Um alto objetivo começou a clarear a minha mente. Ninguém me prometeu que se eu me tornasse como eles a grade seria levantada. Não se fazem promessas como essa para realizações aparentemente impossíveis. Mas se as realizações são cumpridas, também as promessas aparecem em seguida, exatamente no ponto em que tinham sido inutilmente buscadas. Ora, naqueles homens não havia nada em si mesmo que me atraísse. Se eu fosse um adepto da já referida liberdade, teria com certeza preferido o oceano a essa saída que se me mostrava no turvo olhar daqueles homens. Seja como for, porém, eu os observava desde muito tempo antes que viesse a cogitar nessas coisas - sim, foram observações acumuladas as que primeiro me impeliram numa direção definida.

Era tão fácil imitar as pessoas! Nos primeiros dias eu já sabia cuspir. Cuspimos então um na cara do outro; a única diferença era que depois eu lambia a minha e eles não lambiam a sua. O cachimbo eu logo fumei como um velho; se depois eu ainda comprimia o polegar no fornilho, a coberta inteira do navio se rejubilava; só não entendi durante muito tempo a diferença entre o cachimbo vazio e o cachimbo cheio.

O que me custou mais esforço foi a garrafa de aguardente. O cheiro me atormentava; eu me forçava com todas as energias, mas passaram-se semanas antes que eu dormisse. Curiosamente as pessoas levaram essas lutas interiores mais a sério do que qualquer outra coisa em mim. Não distingo as pessoas nem na minha lembrança, mas havia um que sempre voltava, sozinho ou com os camaradas, de dia, de noite, nas horas mais diferentes; colocava-se diante de mim com a garrafa e me dava aula. Ele não me compreendia, queria solucionar o enigma do meu ser. Desarrolhava devagar a garrafa e em seguida me fitava para verificar se eu havia entendido; concedo que sempre olhei para ele com uma atenção selvagem e atropelada; nenhum mestre de homem encontra em toda a volta da Terra um aprendiz de homem assim; depois que a garrafa estava desarrolhada, ele a erguia até a boca; eu a sigo com o olhar até a garganta; ele acena com a cabeça, satisfeito comigo, e coloca a garrafa no sábios; encantado com o conhecimento gradativo, eu me coço aos guinchos de alto a baixo e de lado a lado, onde cabe coçar; ele se alegra, leva a garrafa à boca e bebe um trago; impaciente e desesperado para imitá-lo eu me sujo na jaula, o que por seu turno lhe causa grande satisfação; distanciando então a garrafa e num arremesso alçando-a outra vez, ele a esvazia de um só trago, inclinando-a outra vez, ele a esvazia em um só trago, inclinando para trás numa atitude de exagero didático. Exausto com tamanha exigência não posso mais acompanhá-lo e fico pendurado frágil na grade enquanto ele encerra a aula teórica alisando a barriga e arreganhando os dentes num sorriso.

Só agora começo o exercício prático. Já não estava esgotado demais pela aula teórica? Certamente: esgotado demais. Faz parte do meu destino. Apesar disso estendo a mão o melhor que posso para pegar a garrafa que me é oferecida; desarrolho-a trêmulo; com esse sucesso se apresentam aos poucos novas forças; ergo a garrafa - quase não há diferença do modelo original; levo-a aos lábios e - com asco, com asco, embora ela esteja vazia e apenar o cheiro a encha, atiro-a com asco ao chão. Para tristeza do meu professor, para tristeza maior de mim mesmo; nem com ele nem comigo mesmo eu me reconcilio por não ter esquecido - após jogar fora a garrafa - de passar a mão com perfeição na minha barriga e de arreganhar os dentes num sorriso.

Com demasiada frequência a aula transcorria assim. E para a honra do meu professor ele não ficava bravo comigo; é certo que às vezes ele segurava o cachimbo aceso junto à minha pele até começar a pegar fogo em algum ponto que eu não alcançava, mas ele mesmo o apagava depois com sua mão boa e gigantesca; não estava bravo comigo, percebia que lutávamos do mesmo lado contra a natureza do macaco e que a parte mais pesada ficava comigo.

De qualquer modo, que vitória foi tanto para ele quanto para mim quando então uma noite, diante de um círculo grande de espectadores - talvez fosse uma festa, tocava uma vitrola, um oficial passeava entre as pessoas -, quando nesse noite, sem ser observado, eu agarrei uma garrafa de aguardente deixada por distração diante da minha jaula, desarrolhei-a segundo as regras, sob atenção crescente das pessoas, levei-a aos lábios e sem hesitar, sem contrair a boca, como um bebedor de cátedra, com os olhos virados, a goela transbordando, eu a esvaziei de fato e de verdade; joguei fora a garrafa não mais como um desesperado, mas como um artista; na realidade esqueci de passar a mão na barriga, mas em compensação - porque não podia fazer outra coisa, porque era impelido para isso, porque os meus sentidos rodavam - eu bradei sem mais "alô!", prorrompi num som humano, saltei com esse brado dentro da comunidade humana e senti, como um beijo em todo o meu corpo que pingava de suor, o eco - "Ouçam, ele fala!".
Repito: não me atraía imitar os homens, eu imitava porque procurava uma saída, por nenhum outro motivo. Com essa vitória também não se tinha feito muita coisa. A voz voltou a me falhar imediatamente; só apareceu meses depois; a aversão à garrafa veio ainda mais fortalecida. Mas fosse como fosse a direção a seguir havia sido dada de uma vez por todas.

Quando em Hamburgo fui entregue ao primeiro amestrador, reconheci logo as duas possibilidades que me estavam abertas: jardim zoológico ou teatro de variedades. Não hesitei. Disse a mim mesmo: empregue toda a energia para ir ao teatro de variedades; essa é a saída, o jardim zoológico é apenas uma nova jaula; se você for para ele, está perdido.

E eu aprendi, senhores. Ah, aprende-se o que é preciso que se aprenda; aprende-se quando se quer uma saída; aprende-se a qualquer custo. Fiscaliza-se a si mesmo com o chicote; à menor resistência flagela-se a própria carne. A natureza do macaco escapou de mim frenética, dando cambalhotas, de tal modo que com isso meu primeiro professor quase se tornou ele próprio um símio, teve de renunciar às aulas e precisou ser internado num sanatório. Felizmente saiu logo de lá.

Mas eu consumi muitos professores, alguns até ao mesmo tempo. Quando já havia me tornado seguro das minhas aptidões e o público acompanhava meus progressos, começou a luzir o meu futuro: contratei pessoalmente os professores, mandei-os sentar em cinco aposentos enfileirados e aprendi com todos eles, simultaneamente, à medida que saltava de modo ininterrupto de um aposento a outro.

Esses meus progressos! Essa penetração por todos os lados dos raios do saber no cérebro que despertava! Não nego: faziam-me feliz. Mas também admito: já então não os superestimava, muito menos hoje. Através de um esforço que até agora não se repetiu sobre a terra, cheguei à formação média de um europeu. Em si mesmo talvez isso não fosse nada, mas é alguma coisa, uma vez que me ajudou a sair da jaula e me propiciou essa saída especial, essa saída humana. Existe uma excelente expressão idiomática alemã: sich in die Busche schlagen [desaparecer misteriosamente, cair fora]; foi o que fiz, caí fora. Eu não tinha outro caminho, sempre supondo que não era possível escolher a liberdade.

Se abranjo com olhar minha evolução e sua meta até agora, nem me queixo nem me vejo satisfeito. As mãos nos bolsos das calças, a garrafa de vinho em cima da mesa, estou metade deitade, metade sentado na cadeira de balanço e olho pela janela. Se vem uma visita, eu a recebo como convém. Meu empresário está sentado na ante-sala; se toco a campainha ele vem e ouve o que tenho a dizer, à noite quase sempre há representação e tenho sucessos com certezas difíceis de superar. Se chego em casa tarde da noite, vindo de banquetes, sociedades científicas, reuniões agradáveis, está me esperando uma pequena chimpanzé semi-amestrada e eu me permito passar bem com ela à maneira dos macacos. Durante o dia não quero vê-la; pois ela tem no olhar a loucura do perturbado animal amestrado; isso só eu reconheço e não consigo suportá-lo.

Seja como for, no conjunto eu alcanço o que queria alcançar. Não se diga que o esforço não valeu a pena. No mais não quero nenhum julgamento dos homens, quero apenas difundir conhecimentos; faço tão-somente um relatório; também aos senhores, eminentes membros da Academia, só apresentei um relatório.

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